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Manuel Armando

Padre

(Des)trastejar ou (des)tralhar

Sempre engoli mal os termos “traste” e “tralha”, sobretudo quando alguém os desvirtua, dando-lhes um sentido pejorativo e os aplica sem repulsa nem brio a pessoas que, pela idade ou estado de menos saúde, aparecem como supostos estorvos diante de gente que mais procura uma falsa e vazia forma de viver e até finge desconhecer a transformação natural de todos para quem os anos escorrem inexoravelmente, rumo ao fim.

É ditame da natureza humana a passagem da idade de cada um, sempre numa decadência progressiva física e, ao mesmo tempo, na diminuição das forças corporais e psíquicas. Ora, nenhuns dos indivíduos que não conseguem movimentar-se com a mesma destreza de tempos atrás, por muito trôpegos que apareçam devido à sua idade, dor, amnésia e outras maleitas conhecidas ou encobertas, poderão ser julgados como tropeços que impeçam outros de correrem a desenvencilharem-se com facilidade.

Ainda que as faculdades, outrora frescas, se vão enfraquecendo, jamais se deverá esquecer todo o tempo em que cada um se desembaraçou com arte e saber em tudo quanto a vida lhe apresentou à sua frente, dando à família e à sociedade verdadeiros testemunhos de uma grandeza construtiva, tantas vezes, anulando-se a si próprios, aos seus bens e ganhos, em favor dos familiares mais próximos ou outros membros da comunidade.

Tentar ignorar-se todas estas circunstâncias e passados será cometer-se um autêntico crime tão hediondo quanto é manifestado por esse desprezo perante uma tal humanidade organizada e composta por indivíduos jovens ou menos jovens.

Num grau de exigência pessoal em busca de harmonia e desenvoltura anímica, os donos de uma habitação fazem periodicamente uma arrumação diferente, depuradora e de destrinça, operando pesquisa minuciosa e aturada a vários trastes e tralha que se vão acumulando, ao longo de anos, nas estantes e armários ou nos cantos escondidos e escuros da casa. Deparam-se frequentemente, por isso, frente a alguns móveis velhos que parece não terem já utilidade imediata porque estão fora de moda ou não funcionam mesmo. O destino, portanto, é o caixote do lixo ou a fogueira destruidora.

Coisas antiquadas e desatualizadas terão a desdita de um fim inglório e são votadas ao abandono total, pondo-se de parte a reutilização dos seus préstimos tão valiosos noutras épocas.
Haverá, porém, algo que produza nostalgia e isso volta a ocupar um lugar por mais tempo ou vai alienar-se em favor de alguém que ainda se permite conceder-lhe alguma importância.

Na verdade, há a necessidade intrínseca de (des)tralhar uma casa para melhor equilíbrio mental daquele que sente a ânsia de alguma liberdade.

Por seu turno uma parte da sociedade – cremos que mínima – tende a fazer essa mesma operação, mas com pessoas que se vão tornando mais débeis e não podem dar, mais alguma vez, ao geral ou às famílias aquilo que era sua tarefa e apanágio permanentes.

Passam a ser despejadas para ambientes e sítios onde vão amargando ausências e desdém por tudo quanto realizaram de positivo e útil enquanto se achavam aptas.

A “tralha” velha é despejada. Os “trastes” que impedem a modernidade e o conforto são desviados da frente de quem ainda nunca ingeriu o vinagre de vida em dificuldades.

Arrumem-se, sim, compartimentos e gavetas. (Des)trasteje-se ou (des)tralhe-se a coisa mais estrambótica que possa haver, mas, de preferência, despeje-se tudo quanto embaraça no coração o bom senso da admiração e gratidão. Abram-se as mentes à examinação e ao reconhecimento de um passado de todos quantos lutaram, mas que, hoje, já não podem pôr aos ombros aquelas suas armas que angariaram respeito, pão, saúde e doação e até nem regateiam nenhumas benesses ou condições prévias.

Texto escrito ao abrigo do anterior acordo
ortográfico, por vontade expressa do autor