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Manuel M. Cardoso Leal

Economista e Historiador

Mário Soares

Decorreu em outubro passado, em Coimbra, um Congresso dedicado a Mário Soares, no centenário do seu nascimento. Participaram investigadores de universidades de todo o país; e nele apresentei uma comunicação sobre a sua relação com a Europa.

Mário Soares deixou ao país um legado importante que excede o seu partido (PS). Ele foi um dos grandes obreiros do Portugal moderno, na dupla tarefa da democratização e da integração europeia. Espanta como é que, num país tão fechado e sujeito à longa repressão salazarista, ele conseguiu construir uma rede de relações e chegar ao nível dos líderes da Europa, até ser reconhecido como igual. Assim abriu o caminho para Portugal assumir na Europa um novo destino histórico, em vez do velho império, obrigado a fazer uma descolonização em más condições por ser demasiado tardia.

Por duas vezes, como chefe do governo, em 1976-77 e 1983-85, Soares teve de enfrentar o colapso económico (causado sobretudo pelas crises petrolíferas de 1973 e 1979 e pelos excessos revolucionários de 1975), aplicando medidas de austeridade que lhe custaram dissidências e derrotas eleitorais. No pico da revolução teve atrás de si os outros partidos moderados (como o PPD, cujo chefe, Sá Carneiro, estava ausente em Londres por doença) e também a Igreja, com a qual manteve boas relações evitando a questão religiosa que liquidou a I República. Quanto ao PCP, se Soares teve papel decisivo a impedi-lo de impor um modelo político contra a vontade expressa do povo, não deixou de lhe dar a mão para que pudesse exercer a sua atividade sem sair do quadro democrático.

Ocorreram então várias situações de interdependência na relação com a Europa, muito graças à ação de Soares. É certo que a Europa prestou relevantes ajudas ao nosso país; mas também foi ajudada, no pico da revolução, pela ação de Soares, de parte do MFA e de outras forças, a ver-se livre do perigo do cerco soviético. E depois, quando a Europa ajudou o governo de Soares (o primeiro socialista a chegar ao poder no sul da Europa) a enfrentar o colapso económico, observou como Soares, em vez dos modelos estatizantes e coletivistas preferidos por outros partidos socialistas do Sul, procurou reanimar a iniciativa privada como estímulo da economia de mercado; e este exemplo foi seguido por esses partidos quando também chegaram ao poder. Para Soares o socialismo democrático é compatível com a economia de mercado, cabendo ao Estado exercer o papel de corrigir as desigualdades criadas pelo mercado. Aliás, depois do colapso do comunismo, os modelos estatizantes da economia caíram em desuso.

O sucesso da transição democrática alcançado em Portugal, muito graças à clarividência e coragem de Mário Soares, fez escola, foi discutido dentro e fora da Europa, dando origem, segundo um autor americano, à «terceira vaga» de democratização no mundo, que logo envolveu a Espanha e se propagou aos países sul-americanos, chegando à África, à Ásia, aos países satélites da URSS e à própria URSS.

Como Presidente da República, deputado no Parlamento Europeu e depois ainda, Soares continuou a intervir sobre as questões europeias. Estava feliz com os efeitos da adesão à CEE, benéficos para Portugal, cujo poder de compra duplicou desde 1980 até agora, passando de menos de 60% para mais de 80% da média da União (Expresso Economia, 12/06/2025). Mas não estava feliz no período crítico da troika, que obrigou a severas medidas de austeridade, entre 2011 e 2015. Foi neste período que ele fez as suas últimas intervenções, marcadas pela tristeza ao ver a obsessão financeira e a falta de solidariedade com que a União Europeia, demorou a acudir aos países mais afetados (Grécia e Portugal), pondo em risco o modelo social europeu. Mário Soares defendia que, para ser uma potência internacional, a União Europeia devia adotar uma política externa e de segurança comum, com meios próprios de defesa militar; e devia adotar um modelo federal para tornar mais eficaz o processo de decisão. Podemos assim imaginar as posições que ele tomaria nos debates que percorrem a Europa na atual situação política mundial.