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Rui Miguel Conceição

Licenciado em Ciências da Comunicação

A engenharia da linguagem: quando as palavras se tornam armas políticas

“Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força.” Lembrei-me destes slogans do IngSoc, partido dominante no romance distópico 1984, quando vi, há algumas semanas, o primeiro-ministro Luís Montenegro reagir às críticas sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2026, que previa uma redução de 10% na rubrica das compras do Serviço Nacional de Saúde.

Confrontado com esse valor, Montenegro retorquiu, visivelmente irritado, que “a palavra corte não é correta”. Em vez disso, falou em “poupança” e “orientação exigente”. O que está em causa não é apenas o que se decide, mas como se nomeia o que se decide. Neste caso, “corte” passa a ser “poupança”. A semiótica ajuda a perceber o alcance desta operação: alterar o significante para moldar o significado e influenciar a perceção pública.

Convém, contudo, reconhecer um ponto essencial: a política vive de enquadramentos e nem toda a utilização de eufemismos é manipulação deliberada. Muitas vezes, trata-se apenas de suavizar uma realidade impopular – uma prática comum em democracias. O problema não reside tanto na intenção, mas nas consequências estruturais que estas escolhas linguísticas podem produzir.

Este mesmo mecanismo linguístico é levado a extremos noutras geografias políticas, com uma intencionalidade e uma gravidade que não têm comparação com o exemplo português. Aqui ficam alguns casos paradigmáticos.
Vladimir Putin continua a classificar a invasão da Ucrânia como “operação militar especial”, e nem o “simpático” Jerónimo de Sousa, então secretário-geral do PCP, conseguiu pronunciar a palavra “invasão”, preferindo “intervenção militar”, em consonância com o enquadramento ideológico do PCP e com a narrativa russa. Neste caso, não se trata de suavizar a linguagem: trata-se de redesenhar o quadro mental através do qual os cidadãos percebem o conflito. O objetivo não é descrever a realidade; é transformá-la.

Na primeira década deste século, “técnicas de interrogatório reforçadas” foi o eufemismo usado pela administração Bush para práticas reconhecidas internacionalmente como tortura. Mais recentemente, com Trump, “mentira” deu lugar a “factos alternativos”, inaugurando a era da pós-verdade: um ambiente em que os factos deixam de ser irrefutáveis e passam a ser disputáveis.

Mesmo em democracias consolidadas, a linguagem funciona frequentemente como amortecedor emocional ou mecanismo de opacidade. Expressões como “cativações”, “requalificação de trabalhadores”, “reestruturação de empresas” ou “racionalização de meios” suavizam decisões que, ditas de forma direta, seriam politicamente, ou socialmente, mais custosas.

Em todos estes casos, a linguagem opera como higienização simbólica: suaviza, desvia ou reconstrói a realidade. É o mecanismo que Orwell cristalizou em 1984 através da “novilíngua”, um idioma concebido para controlar o pensamento ao limitar o vocabulário. Na vida real, uma ideia não desaparece por falta da palavra que a nomeia, mas pode tornar-se menos visível, menos discutível e, por isso, mais vulnerável à manipulação.

A batalha pelas palavras é, portanto, uma disputa pela interpretação da realidade. E quando a política renomeia o que existe para o tornar mais digerível, menos chocante ou mais favorável, cabe à sociedade civil fazer a pergunta essencial: o que perdemos quando deixamos de chamar as coisas pelos seus nomes?

Quem controla as palavras controla a narrativa. Quem controla a narrativa influencia a opinião pública. E quem influencia a opinião pública molda a política e, consequentemente, o próprio poder.
As democracias não colapsam por divergências políticas. Colapsam quando o conceito de verdade deixa de ser um denominador comum.