No meio da turbulência política e social que acompanha esta greve geral, há uma pergunta que merece ser respondida sem hesitações nem manobras retóricas: quem corre mais riscos com o pacote laboral que o Governo pretende implementar — o setor privado ou o setor público?
E, em simultâneo, quem está realmente na linha da frente desta mobilização?
A resposta, como quase sempre em Portugal, é paradoxal. E revela mais sobre o estado do nosso mercado de trabalho do que qualquer conferência de imprensa governamental.
O setor privado: o impacto que dói no imediato
O pacote laboral incide diretamente sobre as regras que moldam a relação de trabalho no privado.
É aqui que surgem os riscos mais concretos:
– Maior flexibilidade para o empregador, que pode traduzir-se em maior instabilidade para o trabalhador.
– Relações laborais mais frágeis, num país onde a precariedade já é endémica.
– Adaptação funcional e organizacional que favorece as empresas, não os salários.
No privado, cada mudança legal tem um efeito real, imediato e quantificável.
Quem vive com contrato a termo, quem depende de turnos, quem enfrenta pressões diárias de produtividade sente na pele — não na teoria — o risco da reforma laboral.
E esse risco não é abstrato: é alimentar, é financeiro, é emocional.
O setor público: onde a perda não é jurídica, é estrutural
No papel, as alterações propostas pouco mexem com os vínculos públicos.
O Estado não simplifica despedimentos, não liberaliza horários, não transforma carreiras de um dia para o outro.
Mas o risco existe — e é profundo.
Ele manifesta-se em três níveis:
– Desvalorização continua das carreiras, que afasta talento e esgota vocações.
– Aumento de pressão sem contrapartidas, onde mais se exige e menos se devolve.
– Erosão dos serviços públicos, que se fragilizam porque quem lá trabalha se sente invisível.
O perigo não é a perda imediata: é o desgaste lento que um país só percebe quando já é tarde demais.
Quando faltam professores, médicos, técnicos e funcionários que garantem o funcionamento do Estado.
O grande paradoxo: quem perde mais não é quem mais se mobiliza.
A greve mostra outra realidade que merece reflexão séria.
O setor público é quem mais se mobiliza.
Porque tem estrutura sindical, cultura de luta e maior visibilidade.
É também o setor que carrega um cansaço acumulado e um sentimento profundo de injustiça.
O setor privado é quem mais perde.
Mas mobiliza-se menos.
Por medo.
Por precariedade.
Porque muitas vezes protestar é luxo que o salário não permite.
O país fica, assim, perante um cenário desigual:
os mais afetados são os menos capazes de se fazer ouvir.
O que isto diz sobre Portugal?
Diz que temos um mercado laboral desequilibrado.
Diz que a “modernização” proposta corre o risco de polarizar ainda mais um país já fraturado entre trabalhadores protegidos e trabalhadores vulneráveis.
Diz que precisamos de reformas que fortaleçam, não fragilizem, o valor social do trabalho.
E diz, sobretudo, que quando o setor privado sofre em silêncio e o público protesta em voz alta, não estamos perante uma guerra de classes — estamos perante um sintoma de fragilidade coletiva.
Nesta greve geral, o privado perde mais com a lei, o público protesta mais nas ruas — e o país percebe que nenhuma reforma laboral faz sentido se reduzir, em vez de reforçar, a dignidade de quem trabalha.
