Assinar

Manuel Armando

Padre

Brincadeiras Inofensivas

Mudam-se os tempos e as vontades e, no desenrolar das idades, vamos observando como, na verdade, as coisas e os costumes se tornam tão diferentes nas várias etapas da vida.

Parece que temos obrigatoriamente de nos acomodar às diversas vicissitudes de mutação em que o “modus vivendi” se transforma a pouco e pouco e, às vezes, até nos aparece como forma automática a levar o indivíduo a perder o domínio de si mesmo e dos acontecimentos, pois se deixa, apático, conduzir pelos ventos de uma modernidade vazia e impelida por forças que invadem de todos os lados não dá conta de como está a ser enrolado, sem ideias personalizadas e seguras.

O Homem, em si mesmo, desabitua-se de pensar e agir com uma finalidade concreta que o torne feliz e independente. Experimentamos a cada passo o alheamento pessoal de quem pretende entrar na vida particular ou profissional. A sua vontade paralisa e se esvai numa arrogância assustadora.

Todos os passos da modernidade nos fazem temer o embotamento da consciência que faz jus a omitir o valor e identidade de cada pessoa que, se não acorda a tempo, ver-se-á amarfanhado e inutilizado nas suas faculdades mais nobres e verdadeiramente humanas.

Nota-se que a autêntica seiva de fraternidade, convívio, intercomunicação e entrega ao conhecimento próximo do outro se desvanece como a água de um rio que não recebe abastecimento e acaba por morrer sem ninguém que cuide dele, ou como aquele imóvel desabitado a esboroar-se sob os olhares desinteressados de alguns.

A identidade pessoal humana está na mó de cima por razões ignóbeis jamais imaginadas, mas, agora, propaladas por mentes vazias e perversas que assim espraiam a chafurdice onde tantos vão atolando a sua existência.

A fito da luta permanente é alcançar metas sérias e construtivas, mas apresenta-se mórbido sem uma visão de futuro sustentável.

Até os nossos mais pequenos já ostentam uma independência de família e sociedade porquanto certos cuidadores os fazem abstrair de quaisquer atenções aos outros e à vida, pondo-lhes tão precocemente nas mãos meios técnicos que os alienam de tudo quanto merece e subentende presença activa e educativa.

Os humanos, assim, já nem se divertem com aquela singeleza e graciosidade de outros tempos, não muito recuados. As traquinices de outrora tinham outro sabor e saber e eram serenas e respeitosas.
Bem sabemos que os progenitores estavam habitualmente de atalaia para evitar possíveis desrespeitos e convulsões sociais.

Da aldeia quase ninguém saía no intuito de inventar divertimentos porque havia sempre a prata da casa nas diferentes tarefas de “trabalho”. Podia haver quase um desequilíbrio da paz, mas, em breve, tudo se normalizava. As marotices inofensivas eram entretenimento saudável.

A atalho de foice quero contar um episódio curioso e, talvez, hilariante sobre o qual eu, nessa ocasião, tinha o dever de amenizar com autoridade, mas o meu íntimo comprazia-se no entusiasmo juvenil dos autores que permaneceriam ignorados e nunca denunciados.

Estava eu a pastorear a terra, cheia de gente boa que se dava ao luxo de ter tempo para brincar. Então, um grupo de jovens lembrou-se, numa noite de folias, de “assaltar” um curral, donde “fretou”, por horas, um burro. Pela calada da noite, o bicho foi levado no maior e cordial silêncio até ao largo do lugar. Aí, amarraram-lhe uma corda na pata, levando a outra ponta por uma escada acima até a prenderem no badalo do sino da Capela local.

Agora imaginar-se-á o desassossego do pobre animal que, não descansando, impediu os moradores de descansar pelo que perguntavam quem seria o morto daquela noite ou que espécie de serenata estava a ser executada com tamanha maestria.

O resto todos podem tentar “ver”.
Em encontro fortuito com um dos possíveis “actores” na tal cena, fez-me trazer à memória o tipo de brincadeiras de antanho e também lastimar ter-se perdido no nevoeiro do universo humano o uso sadio da diversão galhofeira e inofensiva e olhar para toda a gente que, hoje, já não o sabe fazer porque pouco se ensina a conviver de feição salutar para construir abertura e amizade.