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Manuel M. Cardoso Leal

Historiador

Estados Unidos da América, no pior e no melhor

Nos últimos quatro anos, a superpotência americana deu de si ao mundo uma imagem de sociedade primitiva. Culminou na «grande mentira» de rejeitar as eleições como fraudulentas sem qualquer fundamento e na invasão do Capitólio (sede do Parlamento) por uns milhares de fanáticos armados, perante uma guarnição policial impreparada para o que era previsível. Mas a sociedade dos EUA é muito melhor do que isto, pelos grandes valores e talentos que possui em tantos domínios.

Aliás, na própria miséria que agora mostrou, o sistema político americano esteve também no seu melhor, pois as instituições democráticas prevaleceram e tudo se passou à luz do dia, à vista de todos, em liberdade.

Nisto mostrou ser superior a todas as ditaduras que há pelo mundo, de direita ou de esquerda, onde não há liberdade nem eleições (quando muito há eleições de fachada) e onde quem protesta ou critica arrisca a ser logo levado para a prisão ou para o cemitério.

Como é que tanta gente acredita piamente nas mentiras, na contrainformação e nas teorias de conspiração? É como se houvesse tribos fechadas, com seus chefes, seus meios de comunicação próprios, alimentando o ódio a quem está fora, «nós contra eles». «Verdade ou mentira não interessa, o que interessa é o poder», é uma frase atribuída a Steve Bannon, propagandista da extrema-direita, amnistiado por Trump.

Um dos canais mais poderosos da circulação das mentiras (com alguma verdade para serem mais eficazes) é o das «redes sociais» que nos entram em casa sem bater à porta. A nível europeu discute-se a sua regulação; mas isso é difícil sem pôr em causa as liberdades de expressão e de imprensa que são fundamentais na democracia.

O «trumpismo» aconteceu quando já estávamos nesta «depressão democrática» que tem permitido o avanço da onda populista na Europa; mas agora é também causa do agravamento dessa depressão, pela grande influência que os EUA têm. Faz lembrar os tempos extremistas de há 100 anos, entre as duas Guerras Mundiais (Deus nos proteja). Também em Portugal tem crescido a onda populista, prometendo trazer mais violência à luta política, como se viu na eleição presidencial. O populismo simplifica, usa e abusa do discurso moralista para acusar o sistema de ser corrupto, quer outro sistema (outra ditadura?), arma-se em defensor do povo «explorado pelos políticos», que «nada fazem», «andam todos a gamar», sem distinguir o trigo do joio. Trump, ao ser eleito, também prometeu acabar com «a corrupção das elites» e afinal revelou-se (a quem não sabia ou não queria saber) um intérprete exímio do que acusava aos outros.

Não há governo sem políticos; o importante é que sejam escolhidos pelo povo (todos nós) e não impostos em ditadura. Não há ditador que faça evoluir um povo, não há um «salvador da pátria» que faça pelo povo o caminho que o próprio povo tem de fazer, em liberdade, na sua evolução. E o povo (não alguém por ele) tem de saber escolher quem lhe interessa, quando para tal é chamado regularmente.

Estamos mais conscientes de que a democracia é frágil, precisa ser cuidada, corre perigos de fora e de dentro. Quem defende a democracia não deve tolerar os políticos desonestos. Mas também não deve alimentar um discurso de falsa moralidade que enlameia e generaliza sem distinguir, fazendo o jogo dos adversários.