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Orlando Fernandes

Assinante JB

A regionalização

Sempre que vejo alguém discutir a regionalização, o meu instinto é pensar nos riscos da experiência.

O primeiro é um risco de contexto. Este deve ser o momento mais perigoso das últimas décadas para introduzir o tema, com o populismo fulgurante que para aí anda. Não falo apenas do risco de a campanha para o referendo ser encharcada com os previsíveis tremendíssimos nacionalistas e regionalistas, em que a demagogia encontra habitualmente um pasto bastante nutritivo.

Do que falo, mais do que isso, é do risco de, no momento político que as democracias ocidentais atravessam, colocar um país fundamentalmente coeso com fronteiras seculares estáveis e um sentimento de partilha de percurso e destino históricos (uma raridade na Europa), perante a ilusão de que é constituído por regiões diversas e autossuficientes. Pode não ser um risco claro no imediato, mas também, pode gerar para o futuro um perigo desnecessário.

O segundo risco é o de nos próximos dois anos, até ao referendo para o qual o PS, o PSD e o Presidente da República parecem estar alinhados (em 2024), passarmos mais tempo a discutir a regionalização, como se dela dependesse a resolução de todos os nossos problemas, do que a tratar efectivamente desses problemas.

As grandes narrativas são uma das características mais marcantes da forma de pensar portuguesa. Não duvido de que vamos adorar este interlúdio constitucional, em que todos os assuntos passam a ser secundários, enquanto não resolvemos a magna questão da reorganização político-administrativa da pátria.

O terceiro risco é o de estarmos a procurar uma solução vã para os problemas que resultam do excesso de centralismo e da falta de coesão territorial. Não me parece que algum dia tenha sido demonstrado que esses problemas só poderão ser resolvidos se tivermos regionalização. Não está provado que sem ela não é possível ter um país mais descentralizado e que, com as regras actuais, os políticos não conseguem, dar mais atenção, recursos e poder decisão a todas as regiões.

O quarto risco é o de o PS e o PSD olharem para a regionalização apenas como uma oportunidade de criarem mais lugares políticos e instâncias de poder, para reforçarem a sua hegemonia no país. A fraude democrática que foi o teatro da “eleição” dos presidentes das CCDR, decidida nos bastidores pelos dois partidos (como a antecâmara da regionalização), mostra que o perigo é real.

Seja como for, concedo que Portugal tem uma organização político-administrativa demasiado antiga, provavelmente obsoleta. Há funções do Estado central que deveriam estar em organismos, mais próximos das populações e competências dos municípios que só faz sentido serem exercidas de forma integrada, em instâncias com alcance territorial mais amplo e legitimidade democrática directa.

Há uns anos, especialmente à direita, havia muita gente a defender a fusão de municípios (ou seja, que o programa de Governo de Passos Coelho deveria ter ido além da mera fusão de freguesias). Talvez com a regionalização se consiga um modelo que responda às preocupações quer dos que querem descentralizar o poder, quer dos que o querem fazer substituindo instâncias e racionalizando recursos, em vez de duplicar umas e outros.

Mas o nó górdio da questão está precisamente neste “talvez”. O que é a regionalização? Não sabemos. Em concreto, pode ser uma entre milhares de hipóteses. Entre o ser contra ou a favor há uma zona cinzenta enorme na qual podem existir divisões políticas sérias e profundas.

Por isso convém que nenhum partido deixe de ir a jogo na discussão que se avizinha, para tentar influenciar o modelo que vai a referendo. Só depois de se saber que modelo é esse é que faz sentido ser-se contra ou a favor da regionalização. Antes, é desistir do jogo à partida.