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Carlos Vinhal Silva

Anadiense

A transcendência da extraordinariedade

Há pessoas e acontecimentos que, pela sua importância ou magnitude, perpassam os limites físicos da sua ocorrência; transcendem a natureza que deveria obstruir a sua passagem no tempo e no espaço, alcançando lugares que não esperaríamos que lograssem, mas a que cujas conquistas não somos capazes de ficar indiferentes. Essas pessoas ou eventos deixam, assim, de se encontrar circunscritas a um território ou a uma época histórica para se tornarem património intemporal da humanidade, cuja identidade todos temos o direito e, em certa medida, o dever de recordar e evocar, tanto num contexto histórico de celebração, como num contexto patrimonial pela obra que deixaram à comunidade, social pelas obras que fizeram pela comunidade, ou familiar pelo que fizeram pela família que os criou e que criaram.

Porém, essas pessoas, pese embora distinções naturais de nascimento, eram pessoas comuns, de pele e carne e osso, de sangue e suor e vísceras. Ninguém nasce extraordinário; pelo contrário, essa condição não constitui uma oferta ou uma dádiva hereditária, mas é um caminho de muito trabalho e muito esforço que poucos alcançam. Não há realeza na extraordinariedade: não é um fenómeno que corra no sangue nem é uma dádiva que possamos receber das mãos dos outros. A extraordinariedade é algo que apenas é alcançável pelo bem que fazemos no mundo, pelas responsabilidades que assumimos e cumprimos devotamente, pelo exemplo que deixamos aos demais.

É certo que podem existir catalisadores ou facilitadores que ajudam à partida. Mas ninguém ganha o Nobel da literatura apenas porque lhe ofereceram uma máquina de escrever ou um livro; ninguém se torna Bola de Ouro apenas porque lhe ofereceram uma bola de futebol; ninguém se torna num grande Rei ou Rainha apenas por estar na linha direta de sucessão ao trono. Como diz Ricardo Reis, para se ser grande é preciso ser-se inteiro, dedicar-se inteiramente ao que fazemos, colocando em cada obra o nosso corpo, o nosso sangue, o nosso espírito. Apenas assim é possível transcendermos as condições do nascimento e tornarmo-nos extraordinários no nosso campo de atuação.

Uma vez mais, recordamos a ideia que a extraordinariedade não é uma dádiva nem um dom, não é sorte nem hereditariedade. Ser-se ou não extraordinário é uma questão de dignidade, na medida em que apenas o seremos se nos tornarmos dignos merecedores desse estatuto. Muitos se dizem extraordinários sem o ser; muitos não se assumem como tal e são-no. A extraordinariedade alcança-se somente se nos fizermos dignos dela e, para sermos dignos de tal condição, é preciso humildade e trabalho, sofrimento e persistência, lágrimas e suor, mas acima de tudo, gratidão por quem nos ensinou os primeiros passos e nos guiou pelo exemplo mudo de quem não teve o devido reconhecimento.

Façamo-nos grandes, façamo-nos extraordinários, façamo-nos legado que vive na memória coletiva. Mas, acima de tudo, façamo-nos dignos dessa honra, que é a verdadeira transcendência a que a humanidade pode aspirar.