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Manuel Armando

Padre

Aleijou mais que uma bofetada

Quem passou alguns anos no Seminário, encontra sempre pormenores, impossíveis de fugirem da memória porque, registados de modo indelével e que tanto nos tocaram, trouxeram para a vida um traquejo e orientação, nos diversos planos do nosso dia-a-dia, hoje.

Ninguém nos incentivou a escrever um diário pessoal, pois, se acaso alguém o tivesse sugerido, quantos factos reais poderiam ser narrados, ajudando com outra cor e sentido a nossa vida em todo o estado e lugar.

Muitos episódios dos tempos de antigamente foram, com certeza, alicerces na modelação e solidez de personalidades adultas.

Lembro, a propósito, a exigência de quem nos educava nos valores, em relação ao zelo da nossa roupa e calçado, à higiene pessoal corporal, ao asseio e ordenamento do nosso quarto e livros, ao cumprimento das regras e horários, ao porte singular e de atenção aos outros, ao espírito de respeito para com superiores e colegas e milhentas outras coisas e atitudes que todos ainda recordaremos, de verdade.

Na altura, éramos capazes de exibir cara de poucos amigos e remorder, entre dentes, um desassombro vaidoso. Nas nossas idades actuais, porém, mastigamos a saudade desses anos, enquanto nutrimos o nosso agir com aquilo que aprendemos e ficou registado no disco rígido deste computador – o mais bem construído em toda a sociedade – que é o subconsciente humano.

O que me proponho contar pretende ser homenagem insofismável e sincera a quem, outrora, sempre estava à nossa beira, mesmo com alguns beliscões de que não gostávamos.

Desde pequenitos, cada dia ou semana, eram escalados os encarregados de na Copa recolher os tabuleiros com a merenda dos alunos e trazê-los até ao recinto de recreio onde todos, fazendo fila ordeira, pegavam o que lhes cabia por direito.

Não sou muito apaixonado – nunca fui – por doces, mas pelo chocolate sou um doido – e que Deus me perdoe.

Ora, num determinado dia, estando eu de serviço, o pãozinho do lanche trazia um naco de chocolate.

Como não chegara a hora do “ataque” e eu me julgava “sozinho”, esvaziei um dos pães e “compus” o meu com duas doses que imediatamente asilei no bolso daquela bata de ganga que envergávamos.

É evidente que um “pobre” colega iria recolher o seu pão vazio. Ninguém estranho descortinara por perto, quando me “abasteci”. Mas, na verdade, um “anjo” viu tudo e silenciou, esperando a vez do condenado ao pão seco. Vendo a cara desapontada desse meu companheiro, abeirou-se e perguntou-me: «Se tivesses sido tu a experimentar esta situação, ficavas bem?» «Não», respondi eu, já muito envergonhado e ruborizado. Voltou: «Então dás o pão, que escondeste no bolso, ao teu amigo e tu, hoje, nada comes».

Rasgou-se a cara do colega num sorriso alargado na contemplação daquele maná reforçado e eu trouxe para a vida a lição, nunca esquecida, mais pesada que uma bofetada que tivesse levado naquele minuto.

Na realidade, sempre evoco na vida: – a cada um aquilo a que tem direito por justiça e merecimento.

Obrigado, Padre Manuel Rei. Que o Senhor Deus, com Quem vive, lhe pague o quanto me ensinou e, em tempo nenhum, deixei de lembrar.