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Manuel Armando

Padre

“Bengaladas”

Tive alguma relutância e, digo, mesmo vergonha por haver de andar agarrado a uma bengala.
Sempre pensei ser ela uma companheira fiel e presente em todos os dias só para pessoas de uma certa idade avançada.
Olhando-a, muitos anos atrás, logo quase se tirava o chapéu por respeito, não à dita bengala, mas ao idoso que a abraçava com ternura e confiança.
Era habitualmente feita de um pau qualquer por não se encontrar com facilidade nalgum mercado ou feira. As coisas artesanais também obtinham um valor de venda, embora pouco menos que gratuita. Lembro meu pai fazer uma bengala, não sei para quem, com pau de marmeleiro, bem se imagina porquê. Cortava-o à medida e, ainda verde, curvava-o na ponta, enquanto lhe atava um cordel para forjar o punho em arco, aproximava-o do lume, tornando-o maleável. Depois de arrefecer não mais perdia a forma de meio anel.
Era a bengala de apoio para os pobres.
As coisas, porém, vão evoluindo no decorrer dos tempos, em todos os sentidos e matérias, consoante as pessoas, suas funções, estratos sociais, doenças ortopédicas e ainda o snobismo de determinados fulanos. Concomitantemente aparecem as bengalas dos mais diversos quilates, feitios ou como aparatos adequados e correspondentes à bolsa dos seus donos.
Confesso que possuo uma bengala de aristocrata que acompanhava o fraque e a cartola de pessoa nobre quando subia todos os dias a escadaria dos Tribunais e, depois, fez a gentileza de me doar. O punho é de prata a encimar o pau preto. Tenho-a usado em algumas circunstâncias especiais necessárias. Da cartola não me sirvo, por razões óbvias. Está numa caixa de papelão, que também é relíquia.
Com este arrazoado todo, bem desejo testemunhar o meu apreço e gratidão ao inventor de tal auxiliar. Ninguém saberá quem foi, mas tal também pouco interessa. É importante, isso sim, encontrar à mão esse complemento para evitar as frequentes quedas a que todos nós estamos sujeitos. E quem tem uma bengala por necessidade passa a sentir também maior atenção dos outros. Ou não é verdade que em estabelecimentos públicos se dá a prioridade de atendimento à pessoa que se apresenta atracado a essa “arma”?! Até despoleta a boa educação e simpatia daqueles, nem todos, que olham para o lado e descobrem quem está em grandes e sérias dificuldades.
Tudo isto me leva a acreditar na grandeza das ajudas que recebemos ou damos, mesmo sem se apresentarem notadas e embrulhadas em prata ou ouro. Esses amparos terão de aparecer na base do material forte e seguro da seriedade, sensatez, altruísmo, cuidado pelos outros, fraternidade, e tudo isso sem alarde nem vaidade, mas com o propósito de edificar uma sociedade verdadeiramente humana.
Fazem-se inúmeros apelos em ordem a socorrer tantos irmãos nossos, assolados pelas catástrofes naturais ou causadas pela maldade animalesca de homens. O sentimento da dor leva qualquer pessoa sensível a extravasar-se em generosidade, até quando as suas posses são minguadas.
Quanto mais simples for o coração, mais rica é a bengala que dá alívio e segurança à comunidade que se escora e afirma numa colaboração mútua entre os seus membros.
A solidariedade não é um aparato do passado, nem qualquer iniciativa de alguma inteligência mais iluminada. Ela deverá ser atitude constantemente comprometedora para toda a gente, de modo a dar-se atenção seja a quem for.
Somos a bengala, uns em relação aos outros. Não haja, nunca, pejo ou receio de a usar porque, se esta fosse a tomada de posição assumida universalmente e funcionasse na delicadeza e solicitude da consciência pessoal, conseguiríamos, sem dúvida, um mundo seriamente equilibrado e firme e as nossas “bengaladas” apareceriam nesse topo exemplar como razão espontânea daqueles que procuram para todos os indivíduos o bem-estar.

Texto escrito ao abrigo do anterior acordo
ortográfico, por vontade expressa do autor