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Manuel Armando

Padre

Escrever ou descrever?

Há que haver sempre prudência e atenção na forma como nos expressamos, quer a falar ou a escrever.
O que ocupa a nossa cabeça é bem fácil deitar para fora porque fomos nós que pensámos, sentimos ou experimentámos de modo palpável.

Todavia, os frutos das cogitações nem sempre serão transmitidos com a exactidão que satisfaça a curiosidade ou ânsia de aprender daqueles que ouvem e procuram firmeza em quaisquer momentos.

Terá de ser renovado o sobreaviso quando os interlocutores ouvintes são de exigências graves e dever-se-á ter em conta o grau de entendimento de que são dotados, sejam eles quem forem, gente simples ou complicada, letrada e mesmo só com instrução primária, homens, mulheres, adultos ou crianças.

Parece-me, sobremaneira, muito exigido e importante o modo de trato com estas – as crianças. É que estão permanentemente dispostas a querer experimentar em concreto e com as faculdades tácteis quanto ouvem, lêem, vêem. Ao lidar-se com os mais pequenos, toda a delicadeza é pouca, pois precisam de respostas e conceitos direitos sem as titubeações das incertezas. Estão sempre atentas, ainda que não pareça, e logo se dispõem a “atirar à cara” certas hesitações ou erros de que se apercebam e, como nada têm a perder com a sua frontalidade inata, não se coíbem de incomodar alguém que pense estar a passar-lhes ao lado, sem eles darem por isso. Desiluda-se quem, porventura, procure insistir nessa caturrice controversa.

O nosso dia-a-dia não é – pelo menos não deve ser – feito de mexericos, mas também não peregrinamos de olhos vendados. Normalmente contactamos a vida nos seus diversos meandros, fazendo sobre eles algum juízo crítico consciente, não para dizermos mal de tudo e todos, mas podermos pesar as vicissitudes diárias, locais ou mais abrangentes. Ninguém nos proíbe de tal.

A liberdade que prezamos ainda nos permite acolher as coisas, encará-las e aproveitar o que de positivo descortinamos para não darmos cobro apenas ao que surge de negativo no agir humano.

Enriquecemo-nos espiritual, moral, afectiva e intelectualmente diante das coisas, ambientes e pessoas se analisamos sem outras intenções que não seja o viver em pleno quanto nos é oferecido para edificação pessoal e testemunho social.

É urgente, com certeza, não desperdiçar, a profusão de acontecimentos da natureza humana, como igualmente as maravilhas que o próprio Universo nos apresenta de oferta. Ao recusar tais dádivas, seremos infamemente ingratos.

Em determinadas ocasiões perdemos o ensejo de examinar inúmeros benefícios graciosos por negligência ou porque pensamos dominar tudo à volta de nós quando, afinal, e não sendo fatalistas, havemos de perceber o que está, desde sempre, escrito para nossa utilização e abono. Lá diziam os antigos ruanos: – «ora, já estava escrito», isto é, aquilo que em todos os tempos haja sucedido.

Aquele menino com quem eu conversava, “do alto para baixo”, mostrava grande interesse e indagava algo sobre os meus livros publicados, como é que eu fazia e porquê.

Eu tentei explicar, fazendo-lhe ver que lia, ouvia, observava e depois pensava e escrevia, à minha maneira, como sentia esses factos. Ele escutava atenta e serenamente, mas permitia transparecer uma curiosidade, camuflada entre os seus argumentos que pareciam não pertencer a uma criança de oito ou nove anitos – a sua idade.

Achei-me quase um mestre catedrático, de saber universitário.
Mas, inesperadamente, aquele “ratãozito” embaraçou-me com um reparo muito pertinente e, digamos, capcioso, ripostando-me numa firmeza de grande sabedor.

Levou-me a uma reflexão bastante pessoal e aturada porque me disse naquela peculiar frontalidade infantil e carinhosa: «mas tu, afinal, não escreves. Tu descreves».

Procurei esconder o meu quase desconforto de mentor encavacado, mas ponderei tal “desaforo” e, meditando na realidade diária, tenho de reconhecer e aceitar que todos somos apenas quem descreve, através da vida e preocupação em construir um Universo mais adequado, justo e fraternal, tudo aquilo que, como se dizia então na aldeia, já está escrito. Não inventamos nada, portanto.

Compete a cada um descrever quanto usufrui, com rigor, simplicidade e intenção de acertar na sua eficácia.

Se, por conseguinte, teimamos permanecer na arrogância de que escrever é saber muito, estragamos a nossa hipotética e imprescindível razão da obra e nunca iremos ser capazes de a descrever.

Texto escrito ao abrigo do anterior acordo
ortográfico, por vontade expressa do autor