Assinar

Manuel M. Cardoso Leal

Historiador

Gorbachev e a Europa

Gorbachev deixou uma marca inapagável na história do século XX. Tentou modernizar o regime da ex-União Soviética (cujo centro era a Rússia) e desencadeou enormes mudanças, em todo o mundo e sobretudo na Europa, muito além do que ele mesmo podia imaginar. Para melhorar a economia e o bem-estar do seu povo, reduziu as despesas militares e aliviou a repressão no próprio país e nos países dominados à volta. E logo muitos destes países, mal viram entreaberta a porta da liberdade, fugiram a sete pés e trataram de alcançar proteção integrando-se (mais tarde) na NATO e na União Europeia. Em poucos anos o império soviético desabou como um castelo de areia. Gorbachev ainda assinou com os

Estados Unidos da América um tratado de desarmamento, pondo fim à «guerra fria»; o que foi bom para a paz no mundo e na Europa em particular.

A União Europeia alargou-se com novos membros, dando prioridade ao desenvolvimento económico e ao bem-estar das populações. Em relação à Rússia, aumentou as relações comerciais, confiando que seriam suficientes para assegurar a paz. E sentindo-se protegida na NATO, descurou a sua defesa, sem dar suficiente atenção aos sinais de ressentimento da Rússia. Porque na Rússia, se há muita gente (sobretudo jovens) que preza a liberdade introduzida por Gorbachev, como se viu na sua homenagem fúnebre, talvez a maioria esteja ainda agarrada à memória do império que no tempo dos czares e do regime soviético dominou numerosos países europeus e asiáticos. A União Europeia (pelo menos alguns dos seus membros principais) levou a sua imprevidência estratégica ao ponto de cair em grave dependência da energia russa, ficando agora meio manietada a reagir à invasão da Ucrânia, percebendo que ela própria, o seu desmembramento, é o desígnio principal dos governantes russos.

Com esta guerra a União Europeia encontra-se perante um teste decisivo para a sua existência. Até agora, passados seis meses, verificou-se em geral um reforço, quer da coesão entre as várias nações que a compõem, quer da comum identidade europeia democrática dos seus cidadãos. Mas os lances mais duros do desafio ainda estão para vir: já se aproxima um inverno sem o gás russo, a agravar as atuais dificuldades económicas e do custo de vida. É com estas dificuldades que o ditador russo conta, para que os cidadãos das democracias europeias obriguem os seus governantes a recuar. Ou que entre as nações europeias se levantem divergências tão graves que ponham em perigo toda a União.

Nas democracias a governação não se decide apenas ao nível dos políticos, mas muito ao nível dos cidadãos (como eleitores ou como opinião pública). Ora isto, que na Europa consideramos uma superioridade das democracias, para os ditadores é uma fraqueza, pois eles acham-se superiores por governarem sem atender à opinião pública e reprimindo brutalmente quem ouse levantar a mínima objeção. Não quer dizer que os políticos democráticos devam ser escravos das sondagens, pois grandes políticos são aqueles que, respeitando a vontade dos cidadãos, são capazes de os mobilizar para grandes desígnios, sobretudo em circunstâncias de grande perigo, transmitindo-lhes a esperança num futuro melhor para suportarem com ânimo as inevitáveis dificuldades.

A Europa democrática não pode ficar refém dos ditadores, tem de prevalecer. E assim talvez na Rússia saia derrotada a ditadura dando lugar a uma democracia, respeitadora dos países vizinhos; talvez os cidadãos russos possam também usufruir, enfim, algo que nunca tiveram duradouramente na sua história, a liberdade.