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Manuel Armando

Padre

Gratidão, uma dívida de todos

Com muita frequência, a memória humana é bastante curta. Sobretudo, se isso interessa a um qualquer beneficiado ou a quem o rodeia.

Todos deveríamos estar sempre reconhecidos a tantas mãos e corações que nos abraçaram e acolheram com solidariedade, humildade e singeleza.

A gratidão há-de ser atitude espelhada na firmeza e autenticidade com aquela pessoa que cuidou, amparou e direccionou em ordem ao futuro feliz de outrem mais indefeso, sem manifestar ou sentir desonra nem vergonha.

Reconhecer o bem recebido é de certeza alicerçar uma construção de vida a fazer-se e não temer qualquer derrocada.

É saudável, pois, exaltar o despertar dos dons, operado pelo cuidado permanente e atento daquele que esteve presente desde os primeiros passos titubeantes de quem ainda não aprendera a caminhar, como uma primeira experiência do vigor de ânimo e coragem que ensinou a superar os medos iniciais de quantos levariam tempo a descobrir a maldade ou a bondade do mundo e dos indivíduos.

Podem os Jornais, os meios maravilhosos da Rádio e da Televisão desconhecer ou ignorar tudo isto, passando à frente da vida real e dirigirem-se para o supérfluo, mas um coração, reconhecido e grato, será o melhor e mais bem apetrechado veículo para levar a todos os recantos e latitudes o peso dos valores de acolhimento e formação educativa.

Enaltece quem recebeu e orgulha-se quem deu.
Pessoalmente, digo, são inúmeras as vezes que os factos, até parecendo já quase esquecidos na esquina mais recôndita da memória permanecem sempre grudados nesta vida adulta que se vai envelhecendo.

Quão gratificante é haver alguém a reabrir o baú das recordações e atear o regozijo pela lembrança da utilidade da nossa pessoa numa quota-parte prestada, consolidando esta sociedade no conforto de tantos outros.

A prova documentada pela energia da pureza dos mais pequenos, bem apoiados na sua astuta inteligência e idade, é a elevada e ajustada atestação do bem que se semeou em tempo oportuno e a sua forma de agir nunca mais poderá ser destruída.

Daí a importância e a responsabilidade do carinho e empenhamento da parte de quem educa ou lança sementes de futuro que irão, posteriormente, germinar em grande, pois a sementeira fundamenta-se na seriedade e verdade.
Todos nós recordamos com maior facilidade quanto vivemos e experimentámos na idade tenra do que o acontecido agora na véspera de cada dia.

Li, com alguma unção, o testemunho da mãe de uma criança, dirigido a determinada auxiliar de Educação, cujo nome é bem pronunciado pelos pequenos, sobre a sua forma peculiar de acolher e acompanhar o seu filhito, recordando, deste modo, ter experimentado as mesmas atitudes de carinho para com ela, aquando, pequenita, também passara pela mesma casa. Por tudo isso lhe ficava eternamente grata.

A auxiliar em questão entra agora na reforma, justa mas quase compulsiva, ao fim de trinta e alguns anos de trabalho.
Em jeitos de despedida, recorda algumas das muitas actividades que pensou, elaborou e concretizou ao longo de gerações de crianças.

Com simplicidade – e saudade, imagino eu – descreve algo das suas vivências, assim: «Todos os que passaram pelo meu colo, a quem dei beijinho para curar dói-dói e, por vezes, uma dose reforçada de papa de fruta… a quem cantei canções de embalar, contei histórias, da minha cabeça porque estavam fartos das dos livros – «Fátima, conta uma história da tua cabeça», pediam, e lá me punha eu a inventar…
Todos deixaram marcas no meu coração que ficarão para sempre. Ainda tenho desenhos e bilhetinhos de alguns.

Criámos tantas coisas, juntos: – poemas, canções, raps, jogos, caças ao tesouro com piratas e tudo; danças de fogo, saltos ousados e mirabolantes. Fizemos cabanas, com lonas e cordéis, experiências “científicas”; caminhadas à descoberta de lendas e costumes, eu sei lá… tanta coisa divertida; festas maravilhosas, teatros… Foi tudo muito imaginativo, divertido, fantástico!

Fui a “Chápama”, “Fátma”, “Chátma”, “Pátina”, “Fápma”, “Fá”, “Fátima”.
Fui amiga… sou amiga. «A Fátima é nossa amiga». «Mãe, a Fátima é uma senhora».

Obrigada a todos… graças a vós continuo a ser o que sou».
E foi esta “senhora”, em tempos idos tantas vezes desprezada, acusada inocentemente, vilipendiada e até esquecida, posta à prova, forçada em situações de menos saúde, pressionada, injustiçada… que se retira do trabalho sem grande reconhecimento nem alardes mas, quiçá, numa ténue ou diluída manifestação de apreço por parte de quem poderia esperar diferentes atitudes, mais ou menos nobres.

Escrevo, não por ter ouvido qualquer expressão de lamúria da pessoa referida, mas, assumidamente, baseado na observação pessoal, extra, e porque penso, não querendo dar lições a ninguém, que a gratidão é uma dívida e obrigação de todos.

Texto escrito ao abrigo do anterior acordo
ortográfico, por vontade expressa do autor