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Manuel Calado

Colaborador EUA

Ó pá

Não se admirem os amigos, mas é assim que eu trato aquele outro amigo que já conheceis. Ó Pá. E Ele não se ofende nem se agasta. Porque Ele e Eu somos dois, fundidos em um só. Não se admirem, porque há também as três pessoas da Trindade que, ao fim e ao cabo, acabam por ser apenas uma. Parece mistério, mas não é.

Pois eu e o meu Pá, somos companheiros, em todos os negócios da vida. Às vezes Ele me admoesta e repreende. Outras, vamos ambos prá rambóia. Ou íamos. Agora, tanto eu como Ele estamos mais calmos. Os anitos vão pesando, a mim e a Ele, e as vitaminas e sobretudo o elixir da vida, conhecido cientificamente como Testosterona, decidiram fechar a torneira, e não há mais nada pra ninguém.

Às vezes eu e Ele conversamos sobre este fenómeno, o da perda da vitalidade reprodutória. Pergunto-lhe a razão, e ele encolhe os ombros. Aparentemente ele, sobre este assunto sabe tanto como eu, devido ao facto de sermos irmãos. Porque na outra Trindade, Ele é apenas filho. E os filhos, nunca sabem tanto como os pais.

Ó Pá – perguntei-lhe hoje – achas mesmo que, devido a estas minhas liberdades pensantes, eu esteja alinhavando o caminho para aquele antro fosfórico de Belzebut? Tu, que neste capítulo sabes mais do que eu, achas que a fogueira é mesmo aquilo que eu mereço? Achas mesmo que o “nosso” pai é assim tão mau como parece ?

Até que finalmente o meu querido irmão abriu a boca e disse:

  • Eu sei que tu às vezes és um “boca grande” – disse ele, usando a expressão luso-americana. Dizes mais do que devias, espalhas-te, e fazes um espetáculo de ti mesmo. Eu aviso-te, mas tu nem sempre me ouves, e depois, penitencias-te ao espelho, chamas nomes a ti mesmo, mas já é tarde, meu caro. Mas no fundo és até um gajo porreiro, segundo tenho ouvido dizer por aí. Já te deram umas medalhas e uns papéis que tens encaixilhados nas paredes, como prémio das tuas atividades vocais e escrivatórias. Enfim, para um má figura como tu, o cadastro não está mau de todo.
  • “Mau de todo”, vírgula, – disse eu. Ou está mau, está mauzinho, está assim assim, ou como é?

O meu Irmão sorriu, e disse: Descansa, Manel, que a coisa não está tão preta como te fiz supor. Tens que respeitar mais o teu apelido, fechar a boca algumas vezes e lembrar-te de que, quem muito fala, muito erra. Era assim que dizia o nosso pai calado, recordas-te?

  • Mas tens a certeza de que o nosso outro pai não me vai mandar para o churrasco de Belzebut?, perguntei.
  • Descansa. Esse lugar está reservado apenas para os criminosos de colarinho branco. Os fazedores de guerras e conquistas, os fanáticos, os políticos corruptos, os precipitadores de crises e depressões, os acumuladores de bens terrenos, e os sem coração nem compaixão pelos irmãos de pé descalço, como tu dizes.

Escusado será dizer que fiquei um pouco mais descansado com as palavras e opiniões do meu irmão e companheiro. Como sabem, Ele foi um dia também acusado de falar demais, e pagou caro essa ousadia.

Aparentemente, ele acredita agora nas virtudes do pacifismo, ao contrário dos “Cristãos atrevimentos”, cantados pelo nosso Camões, que teriam ajudado o nosso imberbe Sebastião, na sua inglória e trágica saga contra o Islão.

Neste ponto da conversa, perguntei: Ó Pá, achas que devemos ficar hoje por aqui? Ele acenou com a cabeça, sinal de que o “boca grande”, como Ele disse, já falou demais.