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Manuel Calado

Colaborador EUA

S. Bartolomeu

São Bartolomeu, cuja origem desconheço, é o padroeiro da Freguesia do Troviscal, na Bairrada. Não sei por que carga de água os troviscalenses foram desencantar o santinho, para presidir aos destinos espirituais da sua freguesia. Minha mãe nasceu no Troviscal, e eu sempre tive por aquela terra uma simpatia especial. Parte do meu sangue foi ali produzido, em contacto com a terra, o vinho e os lagares, e os humanos têm costela dos animais e peixes, que no fim da vida vão procriar e morrer no local onde nasceram. Que força os leva lá? Quando criança dos meus cinco ou seis anos, ia com minha mãe levar os folares aos afilhados e sobrinhos do Troviscal e da Feiteira. Minha mãe levava os folares à cabeça, num açafate, e perto da Palhaça partíamos por um carreiro de pé entre as vinhas, a caminho da Feiteira, e depois o Troviscal.

Pelo caminho, minha mãe ia falando comigo e contando histórias que ela conhecia desde menina e que eu gostava de ouvir. Os tios da Feiteira e do Troviscal faziam-me muitas festas, e davam-me uns tostões e escudos que eu metia na algibeira, para comprar figos passados na loja do Tio Albino, mesmo em frente da nossa casa. Na Feiteira, os folares doces eram para os afilhados, filhos da Tia Rosinha, e um dos afilhados era o Frei Gil, o primo Silvério, pai do Padre Mário, que foi prior em Newark, New Jersey, e o irmão, que viria a ser avô da fadista Mariza, que todos conhecem.

No Troviscal, os folares iam para os filhos da Madrinha Rosalina, o Manuel Filipe e o Mário, que viria a casar com a filha do Grangeia, da loja junto à Igreja. E mais tarde, quando cresci e comecei a olhar para a sombra, com os meus 15 ou 16 anos, era eu que ia representar a família de Soza no jantar da festa de S. Bartolomeu. Ia todo ancho e engravatado, na minha bicicleta nova, que o meu pai me havia comprado, precisamente na loja de bicicletas que havia em frente da Loja do Grangeia.

Eu era espigadote e, devido às copiosas leituras, intelectualmente, julgava-me um pouco acima dos meus irmãos da terra. Era contra a ditadura salazariana, e discutia, e tinha opiniões, graças à influência da revista “Vértice”, que assinava, e onde pontificavam todos os jovens escritores, músicos e artistas da época. Que a revista era nesse tempo o órgão dos Neo-Realistas portugueses. E um dia, quando fui à festa do S. Bartolomeu, travei uma discussãozita sabem com quem? Com o Dr. Manuel Granjeia, o fundador do Jornal da Bairrada. Ele era considerado um dos jovens mais inteligentes da terra, e gostava, como eu, de exibir em público as suas qualidades intelectuais. O Granjeia era situacionista, como todos sabem, e eu, o lavrador de Soza, tinha também as minhas ideias ao contrário, e demos ali um pequeno espetáculo, para um grupo de mirones que se juntou à volta a apreciar o despique.

Mais tarde, já com os meus vinte anos, continuei a ir à festa de S. Bartolomeu, e ao jantar do Tio Adriano e da madrinha Rosalina, pais do primo Manuel Filipe, criado na minha casa de Soza até aos dezoito anos, quando foi estudar para Coimbra. Minha mãe não teve filhos por 15 anos, e o Manuel Filipe foi viver para Soza, para ser, eventualmente, o herdeiro das terras, vinhas e pinhais do Tio Manuel. Entretanto apareci eu, por acaso, quando já ninguém esperava por mim, e estraguei os planos do meu primo Filipe. No entanto, continuámos a viver como irmãos e, nas férias, o Manuel Filipe continuava a ir para casa dos tios de Soza, onde tinha os companheiros do liceu e da Universidade. E, escusado será dizer que a sua presença e os seus livros, não deixaram de influenciar a formação da minha pessoa.

E estou-vos a contar isto, para terem uma ideia de quem é este homem calado que vos vem falando há mais de meio século, e que muitos ainda não conhecem pessoalmente, mas apenas pela voz, e pelas histórias que vos vou contando. Mas isto não vai durar muito, meus caros. Já estou avistando as noventa e nove primaveras que, devem concordar, é já uma viagem do “caraças”, como diz um amigo que eu conheço. E é tudo por hoje, e até à próxima, se Deus quiser.