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Manuel Armando

Padre

Solidariedade e “Solitariedade”

Ora, dou por mim a recordar coisas e vida do tempo de criança numa aldeia em que se trabalhava a pequena agricultura doméstica, mais adequada aos gastos diários familiares nos lares onde a riqueza era, tradicionalmente, o numeroso rancho de filhos.

Havia atitudes e gestos que jamais puderam vir a desaparecer da nossa memória pois os nossos olhos viam, os ouvidos escutavam e o “disco rígido” do subconsciente gravava de modo natural e automático, com muita fidelidade e sem grande complicação.

Nada igual aos tempos presentes quando as nossas faculdades intelectivas vão falhando como se estivessem a vingar-se dos esforços a que foram “obrigadas” nesses anos de meninice.

Lamúrias à parte, admitamos que essas épocas voaram e nos deixaram uma saudade profunda, raiando a nostalgia se nos pomos a confrontar alguma coisa com todos os ambientes que agora os nossos dias nos proporcionam.

Ah, como recordo irmos à vizinha buscar uma pitada de sal, um pouco de azeite, uma cebola, um dente de alho, meio merendeiro ou outras coisas mais, emprestadas para aquela ocasião precisa e repostas no dia ou semana seguintes, retribuídos com quantidades aproximadas.

Trabalhava-se em ordem ao bem comunitário e isso era o contributo para a sanidade e solidariedade populares.

Em pequenito eu corria, curioso e com os outros companheiros, atrás do homem que tinha matado a raposa ou o texugo e os levava aos ombros, percorrendo toda a aldeia.

Porquê e para quê?
É que o “caçador” de ocasião prestava grande favor aos aldeãos porque assim aqueles bicharocos não iriam mais prejudicar ou estragar os mimos de quem amanhava arduamente os pequenos campos no intuito de conseguir pôr algumas coisas na mesa para comer.
Tal “caçador”, tornado herói, exibia publicamente a sua presa já morta como um verdadeiro troféu, ganho pela sua valente galhardia e era agraciado pela população aldeã com umas parcas moedas que, oferecidas por esta pessoa e mais aquela, engrossava um pouco mais o seu pecúlio no saquito de valentão.

Fixaram-se-me na minha mente infantil as imagens de todas as vezes que semelhante episódio me passou pela frente.

Agora deduzo, e certamente não me enganarei, que eram sinais genuínos de generosidade e solidariedade recíprocos, bastante raros numa sociedade como esta em que vivemos.

Os indivíduos andam, no presente e cada vez mais, distraídos dos acenos de afecto e familiaridade que era de supor, hoje, mais acentuados e actualizados.

Caminha-se veloz e sadicamente no egocentrismo soberbo e doentio, arrasador das atenções que deveriam produzir e fortalecer laços familiares ou mesmo de mera convivência humana.

E o mal piora quando nos pomos a observar o desinteresse e alheamento mórbidos daqueles que estão em fase de crescimento pessoal e se mostram destituídos dos melhores sentimentos ou valores altruístas, embalsamados que estão já no gelo da indiferença e desatenção.

Não ouso, pessoalmente, enumerar factos observados no dia-a-dia com o geral das pessoas, mas pergunto a mim próprio onde residirá o cuidado pela solidariedade.

As portas estão a trancar-se gradualmente, havendo contínua e geral recusa em relação ao muito que poderia construir comunidades e laços.

O Papa Francisco admoesta: «A fraternidade é a nova fronteira da Humanidade. Ou somos irmãos ou nos destruímos uns aos outros».

Quando os humanos não se entendem solidários em quaisquer latitudes existenciais, gera-se uma classe de seres solitários.

Reparamos, por isso e para a infelicidade de todos, no fenómeno da “solitariedade” a grassar e acentuar-se à nossa frente, arrastando consigo para quem vive só, quase desprezado pelos demais, o desânimo, o desespero e o aniquilamento de personalidade e também as frequentes consequências drásticas e dramáticas das quais vamos tendo notícia.