Assinar

Manuel Armando

Padre

Técnicas e famílias

Ora, pasme-se! Nada, hoje, é como era antes. A sociedade deu e continua a dar uma cambalhota monumental numa série de voltas e re(vira)voltas sem nunca mais acabar. Adormecemos num sistema de acção e acordamos sujeitos a metamorfoses psico-sociais completamente transfiguradas nos métodos de convivência, entreajuda e até compreensão em compromissos, ficando nós atónitos por as leis da anti-natureza serem totalmente diferentes a cada ontem que passou.

Não divisamos o risco que podemos pisar e desconhecemos, portanto, as consequências a que estamos sujeitos. Qualquer destas manhãs mais próximas, despertaremos com as autoridades policiais a baterem-nos à porta com o papel para assinarmos a coima que nos foi infligida por acordarmos um minuto depois da hora costumada.

O dia-a-dia surpreende-nos a todo o instante com notícias e desmentidos, ordenações e contraordenações, leis e escapatórias às mesmas, de réus absolvidos antes de serem condenados nem julgados, dívidas antigas com perdões modernos, pais encarcerados por terem repreendido algum dos filhos, famílias desfeitas porque um dos consortes fez uma sopa mais salgada do que o usual e até um cristão censurado por ter rezado um Pai-Nosso a mais.

O chorrilho de situações sucedidas pode ser completado por todos quantos estão atentos, sem o perigo de se esgotarem no elencar de muitas outras e por outras pessoas.
Nada como dantes.

Confunde-me a diferença abissal de uma vida em sociedade que, hoje, parece não existir mesmo nos bons hábitos familiares que se desvirtuam com passos gigantes.

Continuaremos talvez a ser impertinentes se apontamos alguns malefícios que os meios técnicos trouxeram a todos os sectores da sociedade, quando menos bem aproveitados. Aceitamos que, inequivocamente, são dons aparecidos, porque inventados pela inteligência e ciência humanas, todavia, deverão somente ajudar a desenvolver as capacidades pessoais ou comunitárias, não tendo nunca a prerrogativa de substituir o que é a virtude do poderio intelectual e anímico, intrínseco à natureza humana.

Vai-se criando um individualismo atroz, ainda que as pessoas se digam ligadas a outros parceiros que não se conhecem de lado nenhum.

As famílias, por seu turno, vão-se desmembrando e individualizando abruptamente. E o mal é dar-se conta deste percalço e pouco se procurar contraditar tal situação.

Bem se fazem convívios, mas no final deles, pergunte-se pelas coisas positivas que se aproveitaram dos mesmos.

A propósito, quero introduzir aqui uma meia anedota, que não o será tanto, atendendo ao seu quê de verosímil.

Uma família reuniu duas dezenas dos seus membros mais chegados para celebrar, saboreando, um acontecimento feliz, entre uns pasteis e mais alguma coisa e também algumas bebidas. Não faltaram os pratos, os guardanapos, os talheres, os copos, as flores, as luzes. Mas, onde abundavam modicamente coisas apetitosas, superabundavam os telemóveis para um intercâmbio com o restante mundo global de amizade virtual. Adultos e jovens, todos, cada um com o seu “brinquedo”, ocupados durante todo o tempo. Do que havia para comer-se, apenas era debicado, pois o dedilhar nas teclas tornava-se mais importante.

O diálogo amistoso e construtivo ficaria para terceiras núpcias.
Seguiu-se, porém, a terrina da desilusão. Faltavam na casa as tomadas eléctricas bastantes, escasseando, em número, quantas seriam necessárias para alimentar os ditos apetrechos – os ídolos dos nossos tempos modernos, sem atropelamentos.

Todos os interessados – igual ao número dos comensais, barafustaram com o principal da casa. Meio atordoado, este, e muito envergonhado, viu-se na necessidade de, num ápice, escapar-se e dirigir-se à drogaria mais próxima, onde adquiriu duas dezenas de tomadas de ligação, colocou-as em pratos individuais, servindo-as assim a cada um dos barafustadores, postados na mesa comum.

Todos ficaram estupefactos perante o sucedido, mas talvez não tenham atingido o alcance e sentido de semelhante procedimento naquela altura.

Agora, eu e os leitores pensaremos, com serenidade e sem menosprezo pelos gostos de cada um, que a família é família, o convívio é convívio, a amizade e atenção recíprocas expressam valores que os telemóveis e afins não devem permitir-se separar ou destruir porque a Natureza continua a querer fomentar na união e respeito vivo e sempre actual.
P.S. – «Tudo de bom para ti» (mensagem enviada, via telemóvel, por um dos comensais para outro, sentado na cadeira ao lado).
Pasme-se!
E, por aqui, me quedo sem disposição para lavar a louça partida.

Texto escrito ao abrigo do anterior acordo
ortográfico, por vontade expressa do autor