Foram já algumas as vezes que estive diante da famosa escultura trabalhada por Miguel Ângelo que imaginou a personagem de Moisés, o grande libertador do povo hebreu e a esculpiu em pedra branca como um farol de luz projectada para toda a Humanidade que mergulha nas trevas de egoísmo e desunião.
Sempre olhei a estátua, na Basílica de São Pedro, em Roma, com o misto de admiração e entusiasmo, por um lado e, por outro, sentindo uma espécie de vergonhosa inveja porque sempre reconheci a minha falta de jeito para construir, modelando, quaisquer obras de arte, por mais insignificantes que parecessem e cujos modelos me foram postos na frente, em tantas ocasiões, para que lhes desse formas plausíveis capazes de motivarem momentos de assombro. Mas, como não sou e nunca fui artista, pouco me importei. Terei, certamente, outros dotes noutras direcções.
Fixando a falha no joelho da estátua, recordo a vivacidade com que um professor nos contava, milhentas vezes, o episódio da martelada que o escultor terá desferido na sua obra, gritando para que o Moisés de pedra falasse, tal era a perfeição e grandeza da imagem que ele fizera.
Imagino a impassibilidade de Moisés esculturado que olha despreocupado e insensível o disparate do seu escultor. Ainda hoje se apresenta no seu porte sério e sossegado, com “vida” mas sem alma inteligente, parecendo oferecer o ensejo de diálogo franco, amigo e leal, a todos os milhares de visitantes que por ele passam durante anos e anos a fio. Sempre o mesmo semblante, a sua aparente indiferença, o seu espírito de compreensão e tolerância sobre as opiniões manifestadas por cada indivíduo que experimenta passar, admirar e comentar.
A sua feição corporal admirável e o seu silêncio reflexivo são de fazer estarrecer qualquer visitante que tanto pode embebecer-se com a figura, como parar a azáfama diária e fazer diversificadas acomodações e análises do fenómeno tão simples como grandioso para toda a Humanidade.
Tento fantasiar a reciprocidade criada entre o escultor e a estátua. Nela estão espelhadas a arte e a alma de Miguel Ângelo, querendo ele ouvir da sua obra uma voz que fosse a força para o tal diálogo que promove aproximação, amizade, união e respeito.
“Moisés” não falou, mas tem feito suscitar, de certeza, nos milhares de peregrinos ou meros turistas os sentimentos mais variados.
Agora, dou por mim também a congeminar quão grande é a dificuldade de esculpir um amigo que seja como aquele “Moisés”. Atento na escuta, nada recrimina, não se orgulha da sua posição sobre os outros, guarda segredos, não se envaidece por ser motivo de assombro, não trai, olha impávido e sereno para o presente e, no mesmo mutismo, aguarda um futuro sem se preocupar se vai alcançar algum lugar mais cimeiro na Sociedade.
E nós, que amigos temos ou, melhor, como vamos, ao longo da idade, esculpindo os nossos verdadeiros amigos e como os concretizamos?
Amigo é aquele que compartilha quanto sabe, tem ou faz. Não se deixa dominar pela cobiça nem abusa do ascendente que possa adquirir sobre o outro. Cala o que deve e verbera algum procedimento menos conveniente que encontra em nós, mas numa postura calada e educada que até faz doer, como sinal daquela amizade que compreende, não se cansa nem acusa e convida à reflexão. Não mexerica porque entende sabiamente o agir menos acertado do seu companheiro de viagem no trabalho, divertimento, reflexão e lançamento seguro de alguma obra que irá dar ocasião ao devido exercício das tais capacidades que ficariam submersas na incredulidade que é pródiga em ignorar as potencialidades que cada um possa, porventura, possuir.
O amigo não espalha aos quatro ventos quanto vê e conhece de quem o escolheu como confidente e depositário dos segredos ou sonhos que alimentam vidas.
O amigo ajuda o outro a subir a escada do seu conceito pessoal sem descurar a humildade e a verdade.
O amigo cala, mas a sua mudez educa e leva o semelhante, frequentes vezes, a mudar de atitudes para que o dia a dia seja edificado no desprendimento e alegria sincera de quem procura fazer do seu proceder o bem-estar de uma humanidade comum.
O silêncio é eficaz, mesmo sendo, nalguma ocasião, mordaz, porque não faz alarde de nada e está com o outro, inspirando sinceridade, conforto e o viver numa constante renovação.
Indubitavelmente, esculpir assim amigos exigirá empenho, abnegação, vontade e abertura ao caminho que se deve trilhar sem vergonha nem medo.
Texto escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico, por vontade expressa do autor