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Opinião

Editorial: Ode (à estupidez) triunfal


Oriana Pataco
Diretora do Jornal da Bairrada

A interpretação de textos, fosse em prosa, poesia ou até de peças teatrais, foi sempre um dos meus momentos favoritos nas aulas de Português. Felizmente, tive sempre excelentes professoras, que gostavam de nos pôr à prova e de nos confrontar com as mais inusitadas formas de expressão ou linguagem. Não me lembro de algum dia nos terem dito, quando estudávamos o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, que, no diálogo entre o Diabo e o Parvo, deveríamos passar à frente da passagem onde o Parvo dizia que havia morrido de “samicas de caganeira” ou “de caga merdeira”.
Recordo ainda a abordagem aos poemas eróticos de Manuel Maria Barbosa du Bocage e de como corávamos a ler o “Soneto de todas as putas” ou outros que tais. Sempre abordámos os temas e os autores com tanta naturalidade como seriedade.
A omissão, voluntária, da Porto Editora, de versos do poema “Ode Triunfal”, de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), de um manual de Português do 12.º ano, deixou-me estupefacta. Não queria acreditar que uma editora tivesse, deliberadamente, substituído três versos de um poema de um dos maiores nomes da Literatura portuguesa (e que não fosse!), por considerarem que os mesmos possuíam “linguagem explícita” à pedofilia, defendendo que cabe aos professores decidir se estudam ou passam à frente os referidos versos.
O caso foi revelado no domingo, pelo semanário Expresso e, até ao momento, ainda não ouvi qualquer reação por parte do Ministério da Educação.
Quero crer que quem escrutinou estes manuais desconhecia o poema de Álvaro de Campos, o que é grave, mas mais grave seria que, conhecendo-o, achasse normal esta omissão.
Se esta polémica lhe passou ao lado, faço questão de aqui deixar os versos decapados: “Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas; E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! – Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.”
Só me ocorre dizer duas coisas. Primeiro, é uma total aberração parte do poema ser deliberadamente omitido; segundo, parece-me fundamental que se abordem na escola – e em casa! – temas como a pedofilia, a prostituição e não só. Os nossos adolescentes e jovens (neste caso, trata-se de um manual do 12.º ano!) devem ler, ouvir, conhecer, falar, ser alertados para aquilo que se passa no mundo onde vivem. Para além de se tornarem jovens mais cultos, serão certamente adultos mais conscientes e bem formados.